Existem duas maneiras de você falar de 1983. Uma delas começa em Maggie
Thatcher, Ronald Reagan e as cavalariças do Gal. João Baptista. A outra é voce tentando descobrir um lugar legal no seu quarto pra mocozar a playboy da Carla
Camurati.
Eu prefiro a segunda. 1983 não foi grande coisa. Sétima série é osso
duro, seu nariz fica maior que o rosto e aquele Nike que seu pai comprou no
chinês perto da rodoviária não se parece muito com o que os colegas descolados
trouxeram do Paraguai.
Do ponto de vista daquilo que interessa ao blogue, a música brasileira
vinha passando por transformações estilísticas e gerenciais desde o final da
década anterior. Medalhões meio perdidos, tentando se adequar ao mercado. Gente
nova penando para mostrar serviço. Gravadoras descobrindo que música é business
(ver o livro do Barcinski). Mas isso, a gente sabe hoje. Voltando a 1983, as
preocupações, ocupações e ações eram muito mais mundanas.
Porque vale a pena ouvir? Vôo de Coração (puta nome ridículo) foi disco
de estreia do inglês Ritchie (outra coisa ridícula é esse britanismo associado
a Ritchie. Se tem uma coisa que Vôo de Coração prova é que Ritchie é
brasileiro, porra!) e vendeu 1,2 milhões de cópias segundo dados oficiais (Barcinski!).
O número não é citado à toa: foi o disco de estreia que mais vendeu até então.
Foi o primeiro disco de synthpop
brasileiro, colocando a música pop nacional no mesmo calendário da do resto do
mundo. O disco é muito bem produzido, conta com um time de músicos de respeito,
Liminha, Lulu Santos, uma canja de Steve Hackett (ex-Genesis) e um desconhecido
Lauro Salazar, que comandou a tecladeira. Além disso, o álbum conta com algumas
boas canções, A vida tem dessas coisas,
Pelo Interfone, Vôo de coração e Casanova,
pra citar o básico. Outro fator importante é que Ritchie tinha um penteado
diferente, uma pose blasée e voz meio anasalada com leve sotaque gringo, um
Bowie dos trópicos, o nosso inglês, e a música era cada vez mais parceira da
televisão, então o tipo era bem apresentável e soube captar e capitalizar em
cima.
Claro: isso aqui não é o absoluto Clube da Esquina nem mesmo uma pérola
como o disco de 1975 do Di Melo que são bons pra caralho hoje, assim como foram
na época em que saíram e como serão para todo o sempre. Isso aqui tem que ser
contextualizado: 1983.
Mas: espere! O que todo mundo lembra quando se fala em Ritchie? A
absolutamente impactante (por favor, ajuste seu relógio do tempo para fevereiro
de 1983) Menina Veneno. Essa canção
que, hoje eu percebo, era a mais pura ode à punheta! Menina veneno era Carla
Camurati, Tássia Camargo, Maria Angélica, Maria Virgínia, Soraya, Daniela (a
ruiva), Débora, Maria Cristina e taaaantas outras...
Meia noite no meu quarto, ela vai
subir
(ahan, vai subir bem alto!)
(ahan, vai subir bem alto!)
Ouço passos na escada, eu vejo a
porta abrir
(o prenúncio do gozo)
(o prenúncio do gozo)
Em toda cama que eu durmo só dá
você
(ah vá, você diz isso pra todas)
(ah vá, você diz isso pra todas)
E toda noite no meu quarto vem me
entorpecer
(toda noite aos 14 anos, o que poderia, toda noite, toda tarde, toda manhã, me entorpecer, entorpercer yeah yeah yeah yeah [note o ritmo do iê-iê...])
(toda noite aos 14 anos, o que poderia, toda noite, toda tarde, toda manhã, me entorpecer, entorpercer yeah yeah yeah yeah [note o ritmo do iê-iê...])
Seu corpo inteiro é um prazer do
princípio ao sim
(ahahahah)
(ahahahah)
Sozinho no meu quarto eu acordo sem você
(é tão óbvio, não?)
Enfim. Viva o Ritchie. Ele tornou 1983 um ano melhor.
[M]